Você reparou?
Notou que o chão anda florido? Que o asfalto, tão sem graça em outros tempos, agora se cobre de ouro? Que as árvores, antes secas, resolveram enfeitar o mundo com flores miúdas, como se fossem pedacinhos de esperança caindo do céu?
Talvez, na pressa dos dias, você não tenha visto. Mas setembro chegou. E com ele, um espetáculo — desses que não pedem plateia, mas merecem aplausos.
Quando setembro entrou, não foi com pompas nem tambores. Foi com delicadeza. Uma brisa mais morna, um silêncio diferente no ar, como quem chega de mansinho para não atrapalhar os que ainda dormem. E foi assim, nesse passo leve, que deixei a casa naquela manhã — sem pressa, sem destino, apenas com o coração entreaberto como se ele mesmo fosse uma janela esperando pela primavera.
As ruas, tão comuns nos meses anteriores, pareciam ter sido acariciadas por mãos invisíveis. A poeira que por meses sufocou os olhos e as cores, agora cedia lugar a um novo cenário: um tapete dourado se estendia sob meus pés. Não era obra humana. Era a generosidade dos ipês, que, como promessas cumpridas, despejavam suas flores no asfalto com tamanha abundância que seria pecado apressar os passos.
Cada flor caída era um recado. Como se a própria natureza me dissesse que, sim, o tempo havia passado… mas não em vão.
E então me lembrei da canção. Aquela que dorme no fundo do peito e desperta quando os dias pedem poesia:
“Quando entrar setembro
E a boa nova andar nos campos
Quero ver brotar o perdão
Onde a gente plantou juntos outra vez.”
Suspirei. Porque há canções que não foram feitas para os ouvidos — foram feitas para os momentos em que tudo o que nos cerca se torna metáfora. A flor no chão, o céu mais claro, o coração mais leve. Setembro, então, não era só um mês. Era um convite.
Um convite à lembrança dos que sonharam conosco. Dos que semearam — conosco — a vida, os afetos, as promessas. Alguns ainda estão aqui. Outros, o tempo levou para destinos que não compreendo. Houve os que se perderam no caminho. E eu? Por pouco, não fui com eles.
“Já choramos muito
Muitos se perderam no caminho
Mesmo assim, não custa inventar
Uma nova canção…”
E foi ali, entre o silêncio de uma calçada qualquer e o som das folhas caindo, que meus olhos se encheram d’água. Não era tristeza. Era um tipo raro de alegria: aquela que vem quando a alma entende que, apesar de tudo, ela ainda é fértil.
Eu me sentei num banco qualquer, ladeado por um velho ipê que insistia em florir mesmo com os galhos tortos. O tronco rachado pela idade, as folhas rareando — e ainda assim, ele florescia. Achei bonito demais. Achei parecido demais comigo.
Fechei os olhos por um instante e escutei o sussurro do mundo. Carros ao longe, passos apressados, vozes cruzando o ar… e, ao fundo, o som dos ventos misturado à melodia silenciosa de quem acredita que sempre há algo por brotar.
Eu já sonhei demais, é verdade. Já apostei em utopias, já me frustrei com mãos que prometeram semear comigo e depois largaram a enxada. Já vi campos secos. Mas também já vi, por milagre ou insistência, pequenas sementes vingarem em solo improvável. E quem é de chão batido sabe: até pedra pode dar flor, se Deus quiser.
“Sol de primavera
Abre as janelas do meu peito
A lição sabemos de cor
Só nos resta aprender…”
Essa é a parte que mais me toca. A lição, ah, a lição… eu a sei desde menino. Aprendi com minha avó, que plantava feijão na lua certa. Com minha mãe, que regava os dias com silêncio e oração. Com os mestres da escola, que me ensinaram a sonhar mesmo quando a realidade parecia um deserto.
Mas saber não basta. Saber não é viver. Viver é permitir que o saber germine, se transforme, crie raiz. Só nos resta aprender — e esse aprender, por vezes, é reaprender a caminhar mesmo depois de ter tropeçado mil vezes na mesma pedra.
Me levanto. Os pés afundam levemente no tapete de flores. Sinto como se estivesse pisando sobre memórias — as boas, as tristes, as que ainda não sei nomear. Caminho de volta para casa com o peito mais aberto. Setembro abriu suas cortinas, e o espetáculo da vida recomeça mais uma vez.
E eu estarei na plateia — ou no palco — não importa. O que importa é que ainda me disponho a inventar canções. Ainda me disponho a crer no perdão, a semear com quem quiser semear, mesmo que o campo pareça seco.
E se for pra florir de novo, que seja agora.
Que seja setembro.
Que seja com ipês.
Que seja com o sol da primavera aquecendo, enfim, tudo aquilo que em mim ainda é inverno.
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